terça-feira, 28 de dezembro de 2010

Juristas criticam atuação da mídia no processo penal

Reunidos em São Paulo, no XXIV Congresso de Direito Constitucional, Fernando Ximenes Rocha, Antônio Cláudio Mariz de Oliveira, Antônio Carlos Mathias Coltro e Alberto Toron criticaram a pressão da mídia por penas mais rigorosas.
Anaí Rodrigues
"A liberdade de expressão não pode servir como forma de afronta à dignidade humana". A frase, de Fernando Ximenes Rocha, desembargador do Tribunal de Justiça do Ceará (TJ-CE) e presidente do Tribunal Regional Eleitoral daquele Estado (TRE-CE), foi dita durante o XXIV Congresso de Direito Constitucional, realizado entre os dias 12 e 14 de maio, em São Paulo, e diz respeito à atuação da mídia em relação aos processos penais.

Em palestra sobre o Direito e o processo penal na perspectiva da dignidade da pessoa humana, que reuniu também Antônio Cláudio Mariz de Oliveira, Antônio Carlos Mathias Coltro e Alberto Toron, o desembargador lembrou que tanto a dignidade como a liberdade de expressão são princípios constitucionais e ressaltou a necessidade de que esse não se sobreponha àquele, afirmando que "a liberdade de expressão deve ser exercida com responsabilidade e não pode servir como forma de afronta à dignidade humana".

O desembargador pautou toda sua exposição na influência que a mídia exerce no processo penal e a conseqüência disso para a dignidade das pessoas. Ele afirma que, por pressão da mídia, é comum o atropelo de princípios processuais, como o devido processo legal e a presunção de inocência.

Rocha lembra que tem sido comum os meios de comunicação, muitas vezes com ajuda do Ministério Público (MP) e dos próprios juízes, condenarem por antecipação os indivíduos suspeitos de algum crime, inclusive invadindo sua privacidade. Ele observa que nem sempre a pior sanção é a pena imposta pela Justiça mas sim a repercussão social provocada por essa exposição. "Isso prejudica a própria ressociabilização do sujeito", completa o desembargador.

Por essa razão, o Antônio Cláudio Mariz de Oliveira, advogado criminalista e presidente do Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária, defendeu a chamada Lei da Mordaça (PL 65/99), que proíbe que os promotores de Justiça, delegados de polícia, procuradores, juízes e conselheiros dos tribunais de contas divulguem fatos de que tenham ciência em razão do cargo e que possam, hipoteticamente, vir a violar a vida privada, a honra e a imagem de seus investigados ou denunciados. Para ele, essa lei "não tem nada de mordaça". Oliveira sustenta sua posição dizendo que o Brasil é o único lugar no qual todo o processo ocorre publicamente e defende que o resguardo de determinadas informações durante o processo é importante para garantir que não haja uma "condenação do cidadão antes que ele tenha sido efetivamente julgado".

O desembargador Fernando Ximenes Rocha aponta para a necessidade da defesa intransigente da liberdade de imprensa, concordando com a frase que diz que "melhor um jornal sem governo do que um governo sem jornal", mas insiste que ela não pode prejudicar o bom andamento da investigação. Para ele, que acredita que ninguém perde direito à dignidade por ter cometido um delito, o abuso da liberdade de imprensa prejudica a justiça e a liberdade.


Sede por justiça"A mídia vem atacando muito o Judiciário, o Ministério Público e a polícia", diz Antônio Carlos Mathias Coltro, juiz do Tribunal de Alçada Criminal (Tacrim) de São Paulo e professor da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). Para ele, isso impede que os juízes tomem as medidas efetivas no sentido de resolver o problema da criminalidade, já que essas (que não são as estritamente punitivas) poderiam ser consideradas soluções muito brandas pela mídia, que reflete uma sede de vingança que existe na sociedade. Para o juiz, isso só atrapalha a consecução da justiça.
Durante sua exposição, Mariz de Oliveira criticou também a atuação do Ministério Público no âmbito do Direito Penal. Ele considera que "existe uma corrente dentro do MP que entende que o papel do promotor não é de persecutor da justiça, mas sim de acusador aleatório". O advogado atribui, em grande parte, essa posição ao embalo criado pela mídia e afirma que isso pode gerar dois efeitos: ou juiz se rende às pressões da imprensa, não necessariamente atendendo às previsões legais; ou ele se mantém firme e passa a ser alvo de críticas da sociedade, que não se sente satisfeita com as soluções adotadas pelos magistrados. "Isso faz muito mal à distribuição da justiça", diz.

Mariz de Oliveira acredita que, dessa maneira, o Direito Penal, o sistema penitenciário, o Ministério Público e a imprensa estão cometendo um grave atentado à dignidade humana dos brasileiros, especialmente daqueles envolvidos em uma acusação criminal.
Como exemplo dessa violação aos direitos dos cidadãos, Coltro cita o direito ao silêncio, garantido pela Constituição e acolhido pelo Código de Processo Penal (CPP). Ele explica que, apesar dessa previsão e do fato de haver diversos motivos, que não somente a existência de culpa, pelos quais as pessoas podem não querer falar sobre determinado assunto, "no Direito brasileiro têm-se a idéia de que todo inocente quer falar de pronto, para provar sua inocência e, portanto, uma pessoa não pode se calar sem que isso tenha alguma conseqüência para ela".
Coltro reconhece ainda a importância dos artigos 5º e 6º da Constituição Federal de 1988, mas lamenta que a jurisprudência ainda não tenha chegado a uma conclusão quanto a esses dispositivos. Segundo ele, "embora haja tanta clareza quanto à redação dos dispositivos, ainda não atingimos plena aceitação do que está nos artigos".

Alberto Toron, advogado criminalista e conselheiro federal da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), concorda com ele, dizendo que vivemos em um momento de paradoxo, no qual se observam tantos direitos estabelecidos pela Constituição e ao mesmo tempo tanto desrespeito aos direitos previstos. Ele ressalta, no entanto, o importante papel do juiz que é o de garantir o respeito aos direitos previstos na Constituição.
Política criminal
O problema da influência da mídia não contamina somente o Judiciário e sim se alastra por todas as esferas de poder. O advogado criminalista Antônio Cláudio Mariz de Oliveira diz que "no Brasil, permite-se todas as afrontas à dignidade humana em nome do combate ao crime", o que, para ele, é uma distorção já que o Direito Penal não é método de combate ao crime.

O presidente do Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária aponta como um problema o fato de os legisladores só lidarem com o crime já cometido e não procurarem evitá-lo. "O fato das políticas criminais e das leis serem definidas em momentos de alta criminalidade, geralmente por forte pressão popular - diante de uma população amedrontada e, muitas vezes, furiosa - faz com que os legisladores legislem como se fossem resolver o problema, de forma esquizofrênica. É a lei do terror", critica.

O criminalista diz que isso faz com que, por exemplo, "de 1990 para cá, o número de casas de detenção do sistema penitenciário tenham passado de 15 para 128, só em São Paulo". "Isso sem contar as delegacias de polícias que hoje abrigam cerca de 30 mil presos", conta.

Para ele, para superar a criminalidade é imprescindível que ela seja vista como um problema de toda sociedade. "Se os juristas não tiverem coragem de combater a criminalidade na origem - com o que vão ser tachados de cúmplices dos criminosos (afinal, a sociedade quer punição) -, nada vai acontecer no sentido de diminuir a criminalidade", destaca.

Penas alternativas
Uma proposta para esse combate racional da criminalidade é indicada pelo juiz do Tacrim Mathias Coltro. Ele observa que no "Brasil não se implementou ainda o sistema de penas, ou melhor, soluções alternativas" e que há muita resistência - tanto por parte da sociedade quanto da mídia em geral - a sua adoção. Para o juiz, isso é um grande atraso já que não há um país no mundo em que se tenha aplicado essa soluções e os resultados não tenham sido muito mais positivos do que nos locais que aplicam penas rigorosas.

Ele cita o exemplo de uma região no Amazonas que adotou as penas alternativas e na qual os condenados, obrigados a prestar serviços comunitários, quiseram continuar com o trabalho após o término da pena. "Esse é justamente o tipo de ressociabilização que devemos buscar com a política criminal", afirma Coltro, para quem "o sistema penitenciário que temos hoje está falido".

http://sassoesasso.adv.br/noticia24.php

segunda-feira, 27 de dezembro de 2010

Assédio Moral no Ambiente de Trabalho

Assédio moral ou violência moral no trabalho não é um fenômeno novo. Pode-se dizer que ele é tão antigo quanto o trabalho.


A novidade reside na intensificação, gravidade, amplitude e banalização do fenômeno e na abordagem que tenta estabelecer o nexo-causal com a organização do trabalho e tratá-lo como não inerente ao trabalho. A reflexão e o debate sobre o tema são recentes no Brasil, tendo ganhado força após a divulgação da pesquisa brasileira realizada por Dra. Margarida Barreto. Tema da sua dissertação de Mestrado em Psicologia Social, foi defendida em 22 de maio de 2000 na PUC/ SP, sob o título "Uma jornada de humilhações".

A primeira matéria sobre a pesquisa brasileira saiu na Folha de São Paulo, no dia 25 de novembro de 2000, na coluna de Mônica Bérgamo. Desde então o tema tem tido presença constante nos jornais, revistas, rádio e televisão, em todo país. O assunto vem sendo discutido amplamente pela sociedade, em particular no movimento sindical e no âmbito do legislativo.

Em agosto do mesmo ano, foi publicado no Brasil o livro de Marie France Hirigoyen "Harcèlement Moral: la violence perverse au quotidien". O livro foi traduzido pela Editora Bertrand Brasil, com o título Assédio moral: a violência perversa no cotidiano.

Atualmente existem mais de 80 projetos de lei em diferentes municípios do país. Vários projetos já foram aprovados e, entre eles, destacamos: São Paulo, Natal, Guarulhos, Iracemápolis, Bauru, Jaboticabal, Cascavel, Sidrolândia, Reserva do Iguaçu, Guararema, Campinas, entre outros. No âmbito estadual, o Rio de Janeiro, que, desde maio de 2002, condena esta prática. Existem projetos em tramitação nos estados de São Paulo, Rio Grande do Sul, Pernambuco, Paraná, Bahia, entre outros. No âmbito federal, há propostas de alteração do Código Penal e outros projetos de lei.
O que é humilhação?

Conceito: É um sentimento de ser ofendido/a, menosprezado/a, rebaixado/a, inferiorizado/a, submetido/a, vexado/a, constrangido/a e ultrajado/a pelo outro/a. É sentir-se um ninguém, sem valor, inútil. Magoado/a, revoltado/a, perturbado/a, mortificado/a, traído/a, envergonhado/a, indignado/a e com raiva. A humilhação causa dor, tristeza e sofrimento.

E o que é assédio moral no trabalho?

É a exposição dos trabalhadores e trabalhadoras a situações humilhantes e constrangedoras,repetitivas e prolongadas durante a jornada de trabalho e no exercício de suas funções, sendo mais comuns em relações hierárquicas autoritárias e assimétricas, em que predominam condutas negativas, relações desumanas e aéticas de longa duração, de um ou mais chefes dirigida a um ou mais subordinado(s), desestabilizando a relação da vítima com o ambiente de trabalho e a organização, forçando-o a desistir do emprego.

Caracteriza-se pela degradação deliberada das condições de trabalho em que prevalecem atitudes e condutas negativas dos chefes em relação a seus subordinados, constituindo uma experiência subjetiva que acarreta prejuízos práticos e emocionais para o trabalhador e a organização. A vítima escolhida é isolada do grupo sem explicações, passando a ser hostilizada, ridicularizada, inferiorizada, culpabilizada e desacreditada diante dos pares. Estes, por medo do desemprego e a vergonha de serem também humilhados associado ao estímulo constante à competitividade, rompem os laços afetivos com a vítima e, freqüentemente, reproduzem e reatualizam ações e atos do agressor no ambiente de trabalho, instaurando o ’pacto da tolerância e do silêncio’ no coletivo, enquanto a vitima vai gradativamente se desestabilizando e fragilizando, ’perdendo’ sua auto-estima.

Em resumo: um ato isolado de humilhação não é assédio moral. Este, pressupõe:
1.       repetição sistemática
2.       intencionalidade (forçar o outro a abrir mão do emprego)
3.       direcionalidade (uma pessoa do grupo é escolhida como bode expiatório)
4.       temporalidade (durante a jornada, por dias e meses)
5.       degradação deliberada das condições de trabalho

Entretanto, quer seja um ato ou a repetição deste ato, devemos combater firmemente por constituir uma violência psicológica, causando danos à saúde física e mental, não somente daquele que é excluído, mas de todo o coletivo que testemunha esses atos.

O desabrochar do individualismo reafirma o perfil do ’novo’ trabalhador: ’autônomo, flexível’, capaz, competitivo, criativo, agressivo, qualificado e empregável. Estas habilidades o qualificam para a demanda do mercado que procura a excelência e saúde perfeita. Estar ’apto’ significa responsabilizar os trabalhadores pela formação/qualificação e culpabilizá-los pelo desemprego, aumento da pobreza urbana e miséria, desfocando a realidade e impondo aos trabalhadores um sofrimento perverso.

A humilhação repetitiva e de longa duração interfere na vida do trabalhador e trabalhadora de modo direto, comprometendo sua identidade, dignidade e relações afetivas e sociais, ocasionando graves danos à saúde física e mental*, que podem evoluir para a incapacidade laborativa, desemprego ou mesmo a morte, constituindo um risco invisível, porém concreto, nas relações e condições de trabalho.

A violência moral no trabalho constitui um fenômeno internacional segundo levantamento recente da Organização Internacional do Trabalho (OIT) com diversos paises desenvolvidos. A pesquisa aponta para distúrbios da saúde mental relacionado com as condições de trabalho em países como Finlândia, Alemanha, Reino Unido, Polônia e Estados Unidos. As perspectivas são sombrias para as duas próximas décadas, pois segundo a OIT e Organização Mundial da Saúde, estas serão as décadas do ’mal estar na globalização", onde predominará depressões, angustias e outros danos psíquicos, relacionados com as novas políticas de gestão na organização de trabalho e que estão vinculadas as políticas neoliberais.

(*) ver texto da OIT sobre o assunto no link:http://www.ilo.org/public/spanish/bureau/inf/pr/2000/37.htm
Fonte: BARRETO, M. Uma jornada de humilhações. São Paulo: Fapesp; PUC, 2000.

segunda-feira, 13 de dezembro de 2010

Infanticídio: que crime é esse?



Desde os imemoráveis tempos, relatam-se casos de assassinato de pais contra filhos. Historicamente, desde o homem primitivo, onde o assassinato dos filhos praticados pelos pais (homens) era uma forma de manutenção da hegemonia do poder perante o grupo, ou ainda os praticados pelas mulheres, geralmente como forma de zelo por sua honra, até os dias atuais, onde representa um ato de pouquíssima ocorrência, o fenômeno já passou por inúmeras transformações, ora sendo tratado como conduta abjeta e inconcebível, ora recebendo tons de privilégio, como, em geral ocorre na atualidade, exemplo é ordem jurídica brasileira.

Com efeito, a figura jurídica do infanticídio, que não se confunde com sua conotação etimológica, apresenta situação privilegiada, visto que, seu núcleo – matar – visto sob a ótica genérica, é apenado em até trinta anos (que é a pena máxima prevista pela ordem jurídico-penal brasileira), enquanto que no infanticídio, a pena é de no máximo oito anos.

A doutrina médico-legal contribuiu para as mutações da tutela em questão. Atualmente, convencionou-se conceituar a conduta a partir de uma perspectiva biopsicológica, abandonando a ótica psicossocial. Neste sentido, a visão anterior (psicossocial) fundava-se no raciocínio de que, as circunstâncias provenientes do ambiente social influenciam o psiquismo da mulher, o fazendo de tal forma a abalar o seu estado emocional, propiciando a ocorrência de atos maldosos, sem, contudo, configurar debilidade metal, pois, se assim ocorrer, ter-se-á figura inculpável.

Tal situação era contemplada pelo Código Penal do Império, de 1890, onde havia a figura do infanticídio inspirada em uma situação honoris causa, lastrada na defesa da honra da mulher. Assim, o privilégio deferido a conduta em exame fundava-se na reprovação social relacionada à maternidade alheia ao casamento. Desta forma, quando a mulher engravidava antes de casar-se ou, de forma adulterina, a morte do filho, como subterfúgio à “defesa de sua honra” acabava por receber reprimenda estatal privilegiada em relação ao homicídio clássico.

Nos dias atuais, tal ideograma se põe inadequado, em face dos valores então propalados, emergindo assim o conceito biopsicológico, a partir do qual, movida pela tortuosidade de um parto doloroso, a mãe, com saúde mental perfeita, é levada à um colapso moral, que a leva a dar cabo da vida de sua prole, sob o império deste que é chamado “estado puerperal”.

O fenômeno jurídico do infanticídio é altamente combatido pela ciência médica, que chama a atenção, substancialmente, para a absoluta distinção entre estado puerperal (avocado pelo tipo penal) e o puerpério, que é uma situação pela qual todas as mulheres que dão a luz passam, representando o lapso temporal entre o nascimento do filho e a involução dos caracteres orgânicos da mãe ao estado normal (de não gestante).

Além disso, a psicologia enfatiza a disparidade do infanticídio legal e a depressão pós-parto. Por estas razões, a configuração do elemento subjetivo do tipo do infanticídio acaba sendo um resultado por exclusão, e inumeráveis elementos o exclui, tornando excepcionalmente difícil tê-lo de fato.

Quando se diferencia o estado puerperal de qualquer debilidade mental, a conseqüência lógica é seu posicionamento em uma tênue linha que figura entre a insensatez moral e a razão natural, existencial, sem nunca se afastar da consciência. Diante deste paradoxo, como é possível que alguém consciente perca o estribo moral, se a própria consciência é um pressuposto da moral?

A idéia do colapso moral não se sustenta senão em um estado de inconsciência, e se tal existe, não há que falar em crime, uma vez que a incapacidade de discernimento, mesmo que momentânea, exclui a culpabilidade da conduta, e com isso não há que se falar em crime.

Noutro vértice, a experiência prática demonstra que, a quase totalidade dos crimes de infanticídio são precedidos por uma conduta contrastante com a maternidade. Significa dizer, em regra, tais crimes são precedidos por uma conduta incalta da mãe quanto a sua gestação, não há cuidados pré-natais e, sobretudo, não existe o vínculo psicológico entre a mãe e a vindoura prole. Este cenário, na verdade, demonstra uma pré-ordenação ao assassinato da criança, fugindo completamente ao tipo legal, que estabelece uma circunscrição temporal para o prática do crime, que deve ser realizado durante o parto ou logo após ele.

Desta feita, se existe uma pré-ordenação, não há que falar na conduta como resultante do estado puerperal, uma vez que este não existe antes do nascimento, porquanto, a idéia de que a mãe mata o filho sub a influência de um estado emocional, estimulado pela tortuosidade do parto, é descabida, já que o animus necandi é anterior ao nascimento, e desencadeado por outras razões, que não a tortuosidade deste.

Por certo, a cultura jurídica recepciona o fenômeno em questão a partir de uma concepção, poderíamos dizer, muito mais “empírico-jurídica” que médico legal. A tolerância dos causídicos quanto a imprecisão da caracterização técnica (médica) da conduta infanticida deve-se, sobremaneira, a própria controvérsia da ciência médica em estabelecer parâmetros objetivos do fenômeno, havendo nesta seara até mesmo aqueles que sustentam a sua inexistência.

Sob este preâmbulo, pode-se concluir que a figura jurídica do infanticídio é mera ficção jurídica, não se detendo nem a etimologia da expressão, tampouco a sua definição médica, o que de certa forma rompe com os laços da epistemologia.

Noutra face, tal divórcio se põe necessário, na medida em que, do contrário, estar-se-ia impondo óbice intransponível à eficácia do dispositivo legal. É verdade também que, melhor solução seria extinguir o privilégio deferido a conduta em questão (nos moldes já citados), o que, via de conseqüência, importaria no seu agravamento, a teor do artigo 61, II, “e” do Decreto Lei nº 2.848/40 (Código Penal brasileiro).

Neste sentido, destaca-se a opção do legislador em relação a especialidade da conduta, o que, reitera-se, teve como fundamento um movimento da ciência médica em que se dava substancial ênfase as implicações biológicas sobre o psiquismo humano, o levou a criação de um estado sui generis, localizado entre a insanidade e o dolo, entre o querer matar e o não saber discernir, o que atualmente recebe implacável combate da doutrina médica.

A psiquiatria tenta explicar o fenômeno dando-lhe epíteto de um Transtorno do Estresse Agudo. Neste sentido, sustenta Roberson Guimarães, “que o sintoma característico desse transtorno é uma alteração súbita e geralmente temporária nas funções normalmente integradas de consciência, identidade e comportamento motor, de modo que uma ou duas dessas deixa de ocorrer em harmonia com as outras”. Ainda segundo referido autor, a “capacidade de imputação” da examinada (mãe infanticida) não será, por certo, plena.

Com efeito, apesar da deficiência técnica da expressão, é compreensível que o autor defende a inimputabilidade de quem age sob o império do Transtorno do Estresse Agudo, onde a emoção sobrepuja a crítica, logo, se o impulso primário se efetiva sem a contenção de fatores éticos; se a impulsividade é evidente, como se falar em plena capacidade de imputação?, é o que, textualmente, argüi Roberson Guimarães.

Em última análise, se impõe a conclusão de que, a caracterização jurídica do infanticídio não encontra guarita na ciência médica, seja na psicologia, seja na psiquiatria. O que existe é um tratamento jurídico especial a uma conduta, justificada, equivocadamente, por um estado subjetivo alienígena ao conhecimento médico-científico, e mais que isso, um contraponto a sistemática penal expressamente inserida na ordem legal pátria, que é taxativa em asseverar que sempre agravarão as penas os crimes cometidos contra descendentes, logo, em se tratando de ofensa ao bem jurídico mais importante da tutela estatal, se faz uma ruptura incompreensível entre objeto e sujeito da tutela, na medida em que, ao se conjurarem dois aspectos altamente reprováveis pela sociedade (a morte da prole praticada pela própria mãe), emerge reprimenda privilegiada, sendo que, de outro lado, corre-se o risco de impor a pessoa mentalmente insana, ainda que transitoriamente, uma pena, a contrario sensu do arcabouço principiológico regente da disciplina jurídico penal contemporânea.



Flávio Alexandre da Silva
Acadêmico de Direito da UNIFOZ.
Inserido em 14/9/2006
Parte integrante da Edição no 195
Código da publicação: 1546
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Fonte: http://www.boletimjuridico.com.br/doutrina/texto.asp?id=1546

segunda-feira, 6 de dezembro de 2010

Eutanásia: Direito de matar ou direito de morrer?



Antonio Baptista Gonçalves
"Nunca é lícito matar o outro: ainda que ele o quisesse, mesmo se ele o pedisse (...) nem é lícito sequer quando o doente já não estivesse em condições de sobreviver”.
(Santo Agostinho in Epistula 204,5: CSEL 57,320)

Existem assuntos que mesmo com o transcorrer do tempo ainda continuam com controvérsias pungentes. Casos do aborto e da eutanásia.
A partir do juramento de Hipócrates, principal pilar de sustentação da dignidade da profissão médica até os dias de hoje, a administração de drogas letais ao paciente terminal ou a omissão de determinados recursos disponíveis na terapêutica têm motivado intenso debate no seio da sociedade. Alguns filósofos, entre eles Thomas Morus e Francis Bacon, já advogavam a prática da eutanásia ativa entre seus contemporâneos.
Diversos povos, como os celtas, por exemplo, tinham por hábito que os filhos matassem os seus pais quando estes estivessem velhos e doentes. Na Índia os doentes incuráveis eram levados até a beira do rio Ganges, onde tinham as suas narinas e a boca obstruídas com o barro. Uma vez feito isto eram atirados ao rio para morrerem.
Em Atenas, o Senado tinha o poder absoluto de decidir sobre a eliminação dos velhos e incuráveis, dando-lhes o conium maculatum – bebida venenosa, em cerimônias especiais. Na Idade Média, oferecia-se aos guerreiros feridos um punhal muito afiado, conhecido por misericórdia, que lhes servia para evitar o sofrimento e a desonra. O polegar para baixo dos césares era uma indulgente autorização à morte, permitindo aos gladiadores feridos evitarem a agonia e o ultraje.
Até mesmo um dos grandes cientistas da humanidade foi responsável pela propalação da eutanásia. Quando em The origin of species, de 1859, Darwin propôs que a seleção natural fosse o processo de sobrevivência a governar a maioria dos seres vivos, importantes pensadores passaram a destilar suas idéias num conceito novo – o darwinismo social.
"Devemos suportar o efeito, indubitavelmente mau, do fato de que os fracos sobrevivem e propagam o próprio gênero, mas pelo menos se deveria deter a sua ação constante, impedindo os membros mais débeis e inferiores de se casarem livremente com os sadios". Darwin acreditava que os criminosos, por sua vida mais breve e a dificuldade de se casarem, naturalmente livrariam as raças superiores de sua má influencia. Além disso, com o predomínio dos casamentos entre os mais fortes, sábios e moralmente superiores - e evitando a miscigenação com as "raças inferiores" - Darwin acreditava na evolução física, moral e intelectual das "raças superiores" pela seleção natural.
Esse conceito, de que na luta pela sobrevivência muitos seres humanos eram não só menos valiosos, mas destinados a desaparecer, culminou em uma nova ideologia de melhoria da raça humana por meio da ciência. Por trás dessa ideologia estava sir Francis J. Galton, que era parente de Darwin, cujo nome é associado ao surgimento da genética humana e da eugenia.
As propostas de Galton ficaram conhecidas como “eugenia positiva”. Nos EUA, porém, elas foram modificadas, na direção da chamada “eugenia negativa”, de eliminação das futuras gerações de “geneticamente incapazes” – enfermos, racialmente indesejados e economicamente empobrecidos –, por meio de proibição marital, esterilização compulsória, eutanásia passiva e, em última análise, extermínio.
No mesmo esteio tivemos a Alemanha nazista de Hitler. O Estado alemão de então estabelecia legalmente que pessoas com incapacidades crônicas e profundas viessem a ser mortas em prol do bem-estar de toda a sociedade. Estes eram os casos de crianças com deficiências mentais severas para as quais o Estado considerava que o mais apropriado seria terminar com suas existências em vez de investir recursos que poderiam ser utilizados de forma mais proveitosa à sociedade.
Em se tratando do século XXI a eutanásia está particularmente em voga, primeiro com o premiado filme espanhol Mar adentro (que conta a história de Ramón Sampedro, um tetraplégico, que tentou legalizar a eutanásia na Espanha).
Na mesma Espanha tivemos um caso recente: Inmaculada Echevarría, de 51 anos Nos últimos 10 anos, Inmaculada foi tratada por um hospital ligado à Igreja Católica - o que dificultava a decisão pela eutanásia. Ela sofria de distrofia muscular progressiva desde os 11 anos e nos últimos 20 anos foi mantida em uma cama de hospital, conectada a um respirador artificial.
O caminho para a discussão sobre a aplicação da eutanásia foi aberto depois de ela ter dito que sua vida não tinha significado e que desejava que a ajudassem a morrer.
A eutanásia é ilegal na Espanha e ajudar alguém a morrer é crime, com pena de pelo menos seis meses de prisão. Echevarría, que ficou conhecida como a enferma de Granada - sua cidade de origem - tinha, no entanto, a autorização do Comitê Ético da Junta de Andaluzia e do Conselho Consultivo Andaluz. Os dois órgãos diferenciaram o ato de desligar os aparelhos da aplicação de eutanásia. Para eles, tratava-se de um caso de "limitação de esforço terapêutico e não de eutanásia”. [1]
A questão também fora suscitada nos Estados Unidos, o que ensejou, a manifestação do próprio presidente criando um dispositivo legislativo que proíbe expressamente a prática da eutanásia.
A discussão agora paira sobre a Resolução 1.805/2006 construída pelo Conselho Federal de Medicina, ao qual autorizava o médico a praticar a ortotanásia, desde que com expresso consentimento dos familiares ou do próprio paciente.
“Art. 1º É permitido ao médico limitar ou suspender procedimentos e tratamentos que prolonguem a vida do doente em fase terminal, de enfermidade grave e incurável, respeitada a vontade da pessoa ou de seu representante legal.
§ 1º O médico tem a obrigação de esclarecer ao doente ou a seu representante legal as modalidades terapêuticas adequadas para cada situação.
§ 2º A decisão referida no caput deve ser fundamentada e registrada no prontuário.
§ 3º É assegurado ao doente ou a seu representante legal o direito de solicitar uma segunda opinião médica.
Art. 2º O doente continuará a receber todos os cuidados necessários para aliviar os sintomas que levam ao sofrimento, assegurada a assistência integral, o conforto físico, psíquico, social e espiritual, inclusive assegurando-lhe o direito da alta hospitalar.”
Neste esteio também temos a Lei Estadual 10.241/1999, criada pelo Estado de São Paulo, que regula sobre os direitos dos usuários dos serviços de saúde, assegura ao paciente terminal o direito de recusar tratamentos dolorosos ou extraordinários para tentar prolongar a vida.
O título deste artigo oferta duas possibilidades: a primeira uma indagação se o próprio médico pode praticar a ortotanásia, e a segunda o pedido expresso da família ou do paciente para que o profissional o faça.
Fundamentalmente, numa análise precípua, faz-se a mais inocente das perguntas: e o que vem a ser a eutanásia?
Qual é a primeira imagem que vem à cabeça das pessoas quando o assunto é eutanásia? Para a maioria, é de alguém desligando um aparelho conectado ao paciente em estado terminal.
A eutanásia etimologicamente, a palavra "eutanásia"  deriva do grego "eu", que significa "bom", e "thanatos" que significa "morte", Isto quer dizer principalmente boa morte, morte aprazível, sem sofrimento. E refere-se a o ato consciente e voluntário de retirar a vida de outrem, ou melhor, o conjunto de métodos que buscam uma morte sem sofrimento, a fim de abreviar os tormentos de um paciente portador de uma doença muito dolorosa e incurável. [2]
O termo foi proposto por Francis Bacon, em 1623, em sua obra "Historia vitae et mortis", como sendo o "tratamento adequado as doenças incuráveis”.
O que não se confunde com a distanásia, a ortotanásia ou com suicídio assistido.
Distanásia significa o prolongamento do momento da morte do paciente, através do uso de métodos reanimatórios.
Já a ortotanásia é a suspensão por parte do médico dos meios artificiais para prolongar a vida de um doente terminal, ou seja, a morte natural decorrente da interrupção de tratamento terapêutico, cuja permanência seria inútil em se tratando de quadro clínico irreversível.
Por fim, o suicídio assistido ocorre quando o próprio paciente passa a ser o agente ativo, com a orientação e auxílio de um médico ou terceiro. Como pode ser acompanhado no filme espanhol Mar adentro.
A maioria dos países sempre refutou a prática da eutanásia. Entretanto, a Holanda, desde 2002, legalizou a eutanásia. A Bélgica, depois da Holanda, também já permite a eutanásia ativa, segundo a lei, o médico não estará cometendo infração se o paciente for “capaz e consciente no momento do pedido”. Na França, o Parlamento aprovou uma lei que define o direito de “deixar morrer” doentes incuráveis (eutanásia passiva). Na Noruega a eutanásia passiva é permitida a pedido de um paciente agonizante ou de seus familiares, se este não puder se comunicar. Nos Estados Unidos, o Estado de Oregon autoriza a morte assistida, que não se confunde com a eutanásia, visto que se trata de uma ajuda para que o paciente terminal realize sua própria morte.
No Brasil existe uma gama infindável de justificativas para a proibição da eutanásia.
No âmbito religioso é inquestionável a reprovação de tal procedimento. Afinal, para os religiosos, de uma maneira geral, Deus concedeu vida a todos e somente Ele poderia retirá-la.
Tal fundamentação se baseia em relatório do Vaticano sobre o assunto: The rights and values pertaining to the human person occupy an important place among the questions discussed today.  In this regard, the Second Vatican Ecumenical Council solemnly reaffirmed the lofty dignity of the human person, and in a special way his or her right to life.  The Council therefore condemned crimes against life "such as anytype of murder, genocide, abortion, euthanasia, or willful suicide" [3]
Além disso, temos uma outra questão: No aspecto moral ou religioso, os riscos seriam incalculáveis: o médico é falível e poderá errar no diagnóstico e também não podemos olvidar os interesses de herdeiros apegados e mesquinhos que teriam sua herança garantida com a brevidade da vida do doente.
No aspecto legislativo os problemas se avolumam.
O primeiro deles surge em nossa Carta Constitucional, através do artigo 5°:
Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: (grifo nosso).
O artigo 5º da Constituição Federal de 1988 garante a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade e à segurança, dentre outros. Ocorre que tais direitos não são absolutos. E, principalmente, não são deveres. O artigo 5º não estabelece deveres de vida, liberdade e segurança.
Os incisos do artigo 5º estabelecem os termos nos quais estes direitos são garantidos: II – ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei; III – ninguém será submetido a tortura nem a tratamento degradante; IV – é livre a manifestação de pensamento...; VI – é inviolável a liberdade de consciência e de crença...; VIII – ninguém será privado de direitos por motivo de crença religiosa ou de convicção filosófica ou política, salvo se as invocar para eximir-se de obrigação legal a todos imposta e recusar-se a cumprir prestação alternativa, fixada em lei; X – são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito a indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação; XXXV – a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito".
A vontade do legislador é expressa no sentido de vedar qualquer possibilidade de ortotanásia, e o caput do artigo 121 do Código Penal é claro: matar alguém. O que denota que a abreviação da vida de outrem é crime previsto e apenável em nosso Direito.
Alguns códigos penais em outros países prevêem diminuição de pena para a eutanásia.
Maria Helena Diniz relata que os Códigos Penais da Alemanha, da Suíça e da Itália encaixam a eutanásia no tipo de homicídio atenuado por motivo piedoso, não se admitindo absolvição nem perdão judicial.
Além do aspecto legislativo existe um outro conflito claro: o ético. E este afeta diretamente o profissional autorizado pelo Conselho Federal de Medicina, qual seja, o próprio médico.
Afinal, o Código de Ética Médica (Resolução do Conselho Federal de Medicina n° 1.246/88), elemento norteador de todo profissional de medicina é claro aos afirmar em seus artigos:
Artigo 6°. O médico deve guardar absoluto respeito pela vida humana, atuando sempre em benefício do paciente. Jamais utilizará seus conhecimentos para gerar sofrimento físico ou moral, para o extermínio do ser humano ou para permitir e acobertar tentativa contra a sua dignidade e integridade. (grifo nosso)
Artigo 29. Praticar atos profissionais danosos ao paciente, que possam ser caracterizados como imperícia, imprudência ou negligência. (grifo nosso)
Para alimentar ainda mais a discussão surge o aspecto moral da discussão, que suscita uma ambigüidade ao profissional da medicina que se vê num dilema, como expresso no Código de Processo Ético-profissional (resolução do Conselho Federal de Medicina n° 1.617/01) em seus considerandos:
Considerando o art. 142 do Código de Ética Médica (CEM) que preceitua que “o médico está obrigado a acatar e respeitar os acórdãos e resoluções dos Conselhos Federal e Regionais de Medicina”.
Pelo considerando acima, o médico será responsabilizado se praticar a ortotanásia, afinal, a prática é refutada pelo Código Ético. Todavia, o profissional é obrigado a acatar as Resoluções dos Conselhos, órgão que autorizou a ortotanásia.
Desta feita pode ser apenado se praticar uma conduta contrária ao Código, mas de acordo com o Conselho?
A resposta é trazida por Pontes de Miranda: “As limitações à liberdade e as limitações obedecem ao cânone geral: só se permitem feitas em lei, que tenha origem no povo e seja igual para todos. ‘Ninguém pode ser preso nem detido senão nos casos da lei e pela forma que a lei estabelecer’”. [4]
O que significa que se existe uma previsão legal esta deverá ser respeitada. E apesar da Resolução do Conselho Federal ter força legislativa, e por assim, derrogar as questões do Código de Ética Médica, na hierarquia legislativa, não supera a lei federal materializada no Código Penal, e muito menos os preceitos Constitucionais.
Denota o sistema brasileiro uma completa consonância com a Declaração Universal dos Direitos Humanos, de 1948, que prevê em seu artigo III: Toda pessoa tem direito à vida, à liberdade e à segurança pessoal.
Juridicamente a proibição se demonstra acertada, todavia, uma dúvida suscita em nossa mente toda a vez que refletimos sobre o assunto: que vida tem uma pessoa que está sendo mantida neste plano existencial apenas pelo auxílio de aparelhos? Ou pior, uma pessoa com morte cerebral, mas viva, também devido aos aparelhos.
A probabilidade de reversão de um paciente neste estado é muito remota, e caso ocorra, os danos produzidos são irreparáveis.
Pontes de Miranda ao falar de psique explicita que todo o homem tem um objetivo: “o que é certo é que, normalmente, o homem tem a vida psíquica condicionada por fim ou objetivo, que a movem que a põe em certo sentido e a distingue das outras vidas”. E esse fim a faz “consciente”. [5]
Por isso, o cerne da questão não é a eutanásia apenas, mas sim, o desejo manifesto de uma pessoa que vê todos os seus sonhos futuros abortados por uma condição completa de incapacidade e dependência.
O mundo pode presenciar o caso de Theresa Marie Schiavo, ou melhor, Terri Schiavo, que permaneceu em uma cama por quinze anos em estado vegetativo considerado irreversível.
Tal fato apenas reacende a polêmica em torno da eutanásia. No caso de Terri, o estado vegetativo se comprovou devido à falta de oxigenação em seu cérebro por cinco minutos decorrente de um infarto e desde o dia 25 de fevereiro de 1990 passou a ser alimentada e hidratada por um tubo.
Nos quinze anos que se sucederam esta foi sua rotina e sua “vida”.
Uma consulta rápida ao dicionário nos remete que vida é a característica própria aos seres vivos que possuem estruturas complexas capazes de resistir a diversas modificações, aptos a renovar, por assimilação, seus elementos constitutivos, a crescer e se reproduzir. São os conjuntos de condições, especialmente materiais (habitação, alimentação, vestuário, etc.), somente necessárias à preservação da existência.
É impossível saber se a pessoa que está em processo vegetativo sente alguma coisa, se consegue ouvir, apesar de não demonstrar reação alguma, porque cada caso tem uma reação distinta.
Apenas um fato é certo, que a vida que a pessoa leva até o seu falecimento não pode ser considerada como normal e saudável. Um corpo que funciona porque é mantido artificialmente, com o seu dono totalmente incapaz de aproveitar qualquer coisa que seja, o que produz uma tristeza sem tamanho para aqueles entes queridos que a cerque.
Imaginamos a dor de uma mãe quando acompanha diariamente o rosto impassível e inerte de sua filha. Os conflitos existenciais, os diálogos com Deus numa tentativa de obter qualquer alteração e ter sua filha de volta.
Anos se passaram e a dor da família somente se acumulou. Com a medicina no estágio em que se encontra seria possível que Terri vivesse mais do que seus próprios pais, e para que?
Apenas para a sociedade dizer que não se pode tirar uma vida, que este é o trabalho de Deus, e a este cabe a decisão da vida e da morte.
Uma pessoa mantida viva. Graças à evolução da medicina, por anos, representa um sofrimento, não apenas ao paciente em si, mas à família em geral, que sabe a extensão do dano. Não há como mensurar a dor de uma mãe visitando um filho por anos, sem qualquer mísero sinal de melhora, e com um futuro não menos desanimador.
Isto apenas para explicitar o aspecto sentimental, porque também existe o custo financeiro de manter a pessoa no hospital por tempo indeterminado. Porém, o dinheiro não é o ponto central, mas sim a qualidade de vida deste indivíduo, se é que se pode qualificar uma vida em estado vegetativo como qualificadamente saudável.
A mantenedura de uma vida a todo o custo tem implicações muito maiores do que o simples desligar de uma tomada.
No Brasil, apesar de ilegal, a eutanásia - apressar, sem dor ou sofrimento, a morte de um doente incurável é ato freqüente e, muitas vezes, pouco discutido nas UTIs de hospitais brasileiros. 
Prolongar artificialmente a vida também tem um custo alto para o sistema público, carente de vagas na UTI. Orlando diz que há pelo menos um paciente terminal em cada uma das 1.440 UTIs do país. [6]
Estamos falando da pressão econômica. E para salientar tal realidade temos o relato do Dr. Eduardo Casanova: Como é sabido, um leito de CTI, custa U$ 1000 diários. Mas  vale literalmente, quando alguém paga; por exemplo, quando o Ministério de Saúde Pública, (com sua carência crônica de leitos), paga a um CTI particular, isto vale U$ 1000 diários. Mas ..., esse mesmo leito, quando a ocupa um velho conveniado, embora valha o mesmo, só se paga U$ 650 mensais, que é o valor de sua cota de conveniado.
É muita a diferença, entre 650 mensais, e mil dólares diários, e é peremptória a necessidade, de documentar o motivo pelo qual, em um caso se suspende o tratamento, e em outro, não se suspende. Terá que explicar, por que um doente é considerado "terminal", e outro não.
Se não contarmos com um critério claramente definido, para esta "suspensão de tratamento", podemos pôr em perigo, o  slogan de "morrer com dignidade". Não haveria, por exemplo, dignidade alguma, em uma morte decidida com um critério não já econômico, mas economicista,  anti-humano.
Só a morte dos animais, pode ser decidida com critério econômico; por isso, não existe o "animalicídio", nem a eutanásia animal, mas simplesmente, "o rifle sanitário". No caso humano, existe o homicídio, e não há "morte digna", sem uma "vida digna", respeitada, e assistida, como bem "não negociável", nem manipulável, até seu fim natural. Proceder de outra maneira, tornaria impossível, a convivência social. [7]
O próprio Presidente da Ordem dos Advogados do Brasil, o Dr. Luiz Flávio Borges D´Urso em artigo publicado no Jornal do Grande ABC teceu considerações favoráveis: “Ora, não sejamos hipócritas, pois o que realmente leva à prática da eutanásia não é piedade ou a compaixão, mas sim o propósito mórbido e egoístico de poupar-se ao pungente drama da dor alheia. Somente os indivíduos sujeitos a estados de extrema angústia são capazes do golpe fatal eutanásico, pois o alívio que se busca não é o do enfermo, mas sim o próprio; que ficará livre do fardo que se encontra obrigado a carregar”. [8]
E deixamos claro, que nosso posicionamento tange a eutanásia passiva apenas, qual seja, o desligamento dos aparelhos que mantém a pessoa tecnicamente viva.
Argumentos como abreviação do sofrimento, o fim da dor, a chegada da paz, não são considerados válidos, ao menos para nós, porque a pessoa, infelizmente não está reagindo positivamente ou negativamente, está inerte, viva mecanicamente.
O que realmente conta, já que a manifestação pessoal da vontade da pessoa não é possível, é a família da envolvida.
Se estes sopesarem que é válido, justo e viável, em todos os aspectos manter um parente seu vivo apenas por estar conectado a uma máquina, tal opinião deverá ser respeitada.
Outrossim, o contrário também, porque, não existe ninguém que se importe mais com outra pessoa do que seus familiares mais próximos. Apesar da própria pessoa não ser capaz de demonstrar o anseio de abreviar sua existência, a família deverá ser considerada como extensão da voz da incapacitada.
Sem dúvida, um dos bens mais importantes, senão o mais importante, é a vida. E permitir que alguém termine com ela deverá ser uma decisão muito pensada e justificada.
Os parentes que reiteradamente sofrem e permanecem ao lado do paciente. Alguns, como os pais de Terri são contra terminar com seu próprio sofrimento, preferem ter uma sombra do era sua filha.
Entretanto, garantimos que se Terri pudesse se manifestar, talvez a opinião dos pais mudasse radicalmente. A dependência do corpo é total, o cérebro não reage, como que uma pessoa pode ter qualquer tipo de benefício em manter-se viva?
O que não se pode tentar é esconder o assunto e a necessidade de uma abertura de conceitos na mentalidade das pessoas. É demasiado simplista rejeitar a eutanásia, até ser obrigado, infelizmente, a suportar as mesmas agruras de uma família que tem uma filha em estado vegetativo por anos.
A eutanásia deve deixar de ser encarada com uma questão proibitiva, um tabu, como no dito popular, e ser amplamente discutida, para que se faça o melhor para o doente e sua família, e não para aqueles que estão no plano externo da questão.
Não se podem vendar os olhos, mas também jamais banalizar sua prática. Que a eutanásia exista, seja justificada, e a família seja a interlocutora daquele que não puder mais exprimir sua própria vontade.
Crime será manter vivo aquele que todos os familiares próximos concordem com sua “liberação” e com o atestado dos médicos que o estado é permanente e irreversível.
Ninguém em condições mentais perfeitas deseja desligar um aparelho médico, seja qual for a sua função, entretanto, como ignorar a representatividade impactante de um indivíduo tecnicamente morto para fins sociais, que atrela a si seus familiares, impedindo, de certo modo a seqüência da vida destes.
A pessoa mantida viva não sofre, mas a dor de quem acompanha seu estado inerte é reiterada e contínua. Pensando nestas pessoas que a lei deve ser revista. Desde que presentes os requisitos já mencionados.
A dor de perder um ente querido é incomensurável, mas creio ser mais vil manter uma vida artificialmente sem propiciar qualquer possibilidade de desfrute, ou seja, que a pessoa possa realmente viver.
Antecipação da morte não pode ser considerada um crime, porque o real delito é praticado dia após dia contra a família que sofre ao ver seu parente vivo, mas incapaz de viver e desfrutar de sua própria vida. 
Por este e vários casos similares o debate sobre a ortotanásia não pode abrandar. Uma pessoa não pode pagar o preço de ser mantida viva apenas pelo avanço da ciência, é como cumprir uma pena em liberdade.
E ninguém pode receber o “prêmio” de uma prisão perpétua em liberdade, o simples desligar de uma tomada não resgata a dignidade da vida humana, mas concede a honra à própria pessoa que está atrelada a um aparelho.
Já é chegado o momento de uma reflexão maior sobre está questão e visualizar que a luta não é pela morte, mas sim por uma vida, mas uma vida de verdade.